Afiliados Betano vão à guerra com ação coletiva
- Fred Azevedo
- há 4 dias
- 8 min de leitura
Atualizado: há 11 horas
Grupo de ex-afiliados da Betano organizam ação coletiva após rompimento contratual unilateral no natal de 2024
Uma virada de ano amarga
Enquanto o mundo comemorava o Natal de 2024, dezenas (possivelmente centenas e até milhares) de afiliados da Betano recebiam um presente indigesto: foram desligados programa de parcerias da empresa. Com breve aviso prévio, sem justificativa clara, sem negociação. Uma carta genérica comunicava o encerramento do vínculo.
A motivação? Uma suposta reformulação estratégica para 2025, que como veremos no transcorrer do artigo, pode ser justificada, mas que deixa dúvidas e com certeza dificuldades para os agora ex-afiliados.
O resultado? Profissionais que haviam construído — ao longo de anos — bases qualificadas de usuários, investido pesado em tráfego pago, estrutura digital, SEO e relacionamento — muitos com times contratados, planilhas de metas e operações registradas como MEI ou até Ltda — viram seus contratos evaporarem do dia para a noite. Será que foi um encerramento justo e legal?
Alguns mantinham canais de Telegram com mais de 50 mil inscritos. Outros operavam como verdadeiros estúdios de conteúdo, com produção diária de vídeos no YouTube, páginas de captura, automações no WhatsApp e campanhas ativas no Google e Meta Ads.

O encerramento foi comunicado por e-mail, em inglês, de forma padronizada e sem detalhamento individual.
A rescisão que encerrou contratos — e expectativas
O rompimento contratual deixou um rastro de problemas para os então afiliados. Em depoimentos colhidos na ação coletiva, estes relatam quebra de contratos de aluguel, demissão de funcionários, interrupção de tratamentos médicos e até ideação suicida.
"Foi no Natal. Não consegui comprar nem o presente do meu filho. Tive que vender meu carro em janeiro pra pagar aluguel e luz." — declarou um dos afiliados.
"Eu bancava salário, fazia lançamento, testava criativos toda semana. A operação morreu sem nem poder negociar um plano de transição. A base de clientes ficou com a Betano, mas quem construiu fomos nós." — relatou outro participante da ação coletiva em conversa com a reportagem.
As perdas variam de R$ 75 mil até meio milhão de reais em faturamento mensal para os afiliados. E não estamos falando de bônus hipotéticos — são comissões sobre jogadores que continuam ativos, apostando, movimentando valores e gerando receita, segundo os relatos.

O que levou afiliados da Betano a preparar uma ação na Justiça brasileira?
Afiliados que preparam uma ação coletiva contra a Betano relatam ter atuado de forma profissional e estruturada, com investimento direto, equipe dedicada e histórico consolidado no setor de iGaming. Segundo relatos recebidos pela reportagem, esses parceiros comerciais dedicaram tempo, capital e operação ativa para fortalecer a presença da marca no Brasil. Agora, eles questionam a legalidade do contrato.
De acordo com o comunicado do grupo:
"A medida foi tomada de maneira abrupta, na véspera de Natal, sem comunicação prévia adequada, sob a alegação genérica de uma reformulação para o ano de 2025. Como consequência, cerca de 95% dos afiliados foram desligados e a empresa manteve a base de jogadores ativa sem repassar novas comissões aos parceiros que os haviam trazido."
Quanto a Betano economizou com os cortes?
Segundo dados apresentados pelos autores, apenas um dos afiliados desligados havia recebido mais de R$ 1,2 milhão no ano de 2024 — com projeção superior a R$ 1,5 milhão para o ano seguinte. Outro ultrapassava R$ 1,4 milhão de receita histórica. Somando os treze profissionais que ingressaram na ação, os pagamentos documentados passam dos R$ 3 milhões.
Ao romper os vínculos unilateralmente — e manter a base ativa de jogadores — a empresa teria promovido, segundo os autores, uma economia silenciosa de milhões de reais em comissões não pagas a partir de 2025. Esses valores integram a base da tese de enriquecimento sem causa e expectativa legítima de continuidade apresentada pelos autores.
Afiliados Betano: como funcionava a estrutura por trás da operação?
Muitos dos profissionais desligados operavam com estrutura semelhante à de pequenas agências digitais.
A rotina incluía:
Compra de mídia paga (Facebook Ads, Google, TikTok);
Captação de leads via landing pages e automações;
Envio de conteúdos diários com links de registro;
Publicação em canais de Telegram, YouTube e Instagram;
Relatórios de conversão e otimização de CPA;
Comunicação ativa com gerentes da Betano por e-mail, WhatsApp e plataformas como Pipefy.
Alguns afiliados relatam ter trazido mais de mil cadastros únicos por mês. Um deles, segundo documentos, previa faturamento superior a R$ 1,5 milhão em 2025. Ao invés disso, recebeu o desligamento — e o silêncio.
A batalha jurídica: cláusulas internacionais, efeitos nacionais
O encerramento foi comunicado por e-mail em inglês, mesmo para afiliados residentes no país. O contexto do desligamento coincidiu com a transição da marca para uma operação local, sob uma nova empresa licenciada de acordo com a Lei nº 14.790/2023.
O envio de notificações redigidas em inglês e a referência contratual à jurisdição estrangeira foram, segundo o advogado que defenderá os afiliados na ação, interpretados como tentativa de reforçar a separação entre a operação internacional encerrada e a estrutura empresarial recém-formada no Brasil. Contudo, decisões anteriores do Poder Judiciário indicam que essa separação contratual pode não afastar a aplicação do direito nacional, especialmente quando há indícios de formação de grupo econômico.
Um novo precedente
No processo 1077331-95.2024.8.26.0100, que envolve diretamente a Betano, a Justiça de São Paulo reconheceu a possibilidade de responsabilização da operação internacional no Brasil com base na formação de grupo econômico com a operação licenciada.
A decisão se apoiou no artigo 21 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015):
Art. 21. É competente a autoridade judiciária brasileira quando: I – o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil; III – a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.
Neste entendimento, a prestação de serviços a consumidores ou parceiros brasileiros, ainda que por empresa sediada no exterior, atrai a competência da justiça brasileira, caso haja produção de efeitos jurídicos no território nacional.
A rescisão unilateral e os limites da liberdade contratual
Segundo os afiliados, diversos contratos de afiliação continham cláusulas que autorizavam a contratante a encerrar a parceria de forma imediata, sem aviso prévio ou justificativa. Ainda que a liberdade contratual seja reconhecida no ordenamento jurídico, ela não é absoluta.
Art. 421 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002): A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Art. 422: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Art. 187: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 478: Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.
O advogado dos afiliados sustenta que essa última lógica pode ser usada de forma inversa: para argumentar que a empresa contratante encerrou o contrato de forma abrupta, impondo prejuízo desproporcional e vantagem exclusiva para si.
A figura do afiliado e a analogia à representação comercial
O advogado defende ainda que, embora os afiliados não sejam representantes comerciais nos termos da Lei nº 4.886/1965, a atividade exercida por eles é funcionalmente análoga:
Dispositivo Legal | Conteúdo | Reivindicação comum |
Art. 27, "j" | Direito a aviso prévio de 30 dias em caso de rescisão sem justa causa | Pedido de nulidade de cláusulas de encerramento imediato |
Art. 27, §1º | Indenização por rescisão imotivada, proporcional à média dos ganhos | Cálculo de indenização por lucros cessantes |
Art. 27, §2º | Direito a comissões sobre negócios concluídos até 90 dias após fim do contrato | Pagamento retroativo com base em usuários ativos |
Possíveis desdobramentos jurídicos pleiteados pelos autores
Indenização por lucros cessantes;
Indenização por danos emergentes (tráfego pago, equipe, estrutura);
Pagamento retroativo de comissões;
Reconhecimento de grupo econômico (CC, art. 50);
Competência da Justiça brasileira (CPC, art. 88).
Possível defesa da Betano: encerramento legítimo e nova regulamentação
Em eventual contestação, a Betano poderá, segundo avaliação de outra advogada consultada, sustentar que o encerramento dos contratos foi um ato legítimo, amparado por cláusulas contratuais válidas, e motivado por exigências legais da nova fase regulatória no Brasil.
Entre os principais argumentos possíveis:
A rescisão decorreu do exercício regular de um direito previsto contratualmente, com cláusula expressa de foro estrangeiro, regência internacional e possibilidade de término unilateral;
A transição para uma nova operação licenciada sob a Lei nº 14.790/2023 obrigou a empresa a encerrar a atuação anterior, inviabilizando a manutenção da estrutura estrangeira e seus respectivos vínculos;
Os jogadores vinculados à base anterior foram descadastrados da plataforma internacional, e o acesso à nova plataforma passou a exigir cadastro do zero, validação KYC, CPF e vínculo com uma operadora nacional licenciada, o que desconfigura continuidade automática;
A empresa poderá afirmar que não houve enriquecimento sem causa, pois não houve aproveitamento automático da base construída — os usuários só voltaram a operar após novo aceite contratual com a entidade brasileira, sob novas regras e obrigações financeiras;
Poderá ainda invocar o artigo 421-A do Código Civil, que estabelece:
“Nos contratos empresariais, presume-se paridade e simetria entre as partes, até que se prove o contrário.”
Ou seja, a Betano pode argumentar que os afiliados atuavam com autonomia comercial plena e assumiram os riscos do modelo. No entanto, ao utilizar a mesma base e promover o recadastro dos jogadores, há aí uma brecha no argumento, visto que há possível reaproveitamento de base e a mera migração de clientes de uma base supostamente internacional para uma base agora nacional se enquadraria no conceito de grupo econômico.
Por fim, poderá se basear no artigo 22 da Lei nº 14.790/2023, que estabelece:
“É exclusiva de instituições brasileiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil a oferta de contas transacionais ou de serviços financeiros de qualquer natureza que permitam ao apostador: I - efetuar depósitos e saques; II - receber os valores de prêmios que lhe sejam devidos.”
Assim, a empresa poderá alegar que a antiga operação se tornou juridicamente incompatível com o novo modelo regulado, sendo o desligamento dos afiliados uma consequência inevitável da reestruturação exigida pelo governo brasileiro.
Sob a ótica de operadores legalizados consultados pela reportagem, a Betano pode estar enfrentando pressões financeiras associadas à legalização plena, como carga tributária elevada, exigências regulatórias mais rígidas e a obrigatoriedade de recadastro completo dos jogadores.
Esses fatores, segundo especialistas do setor, podem fundamentar uma interpretação contratual de necessidade de reestruturação e contenção de custos. Operadores ouvidos em caráter reservado relatam que, no ambiente regulado atual, os custos para aquisição de jogadores se elevaram substancialmente, levando diversas plataformas a encerrar seus programas de afiliação ou realizar cortes semelhantes. Não obstante, a empresa já sabia da mudança há cerca de 1 ano visto que o governo deu tal período de graça para a transição a todos os operadores, e poderia ter dado um aviso no mínimo maior aos seus parceiros.
O silêncio da Betano e a reabertura seletiva da afiliação
Após o desligamento em massa, a empresa reabriu seletivamente novos cadastros de afiliados, sem divulgar mudanças concretas em suas diretrizes. A justificativa, segundo relatos de bastidores, seria o suposto desconhecimento sobre a forma como os afiliados promoviam a marca. Isso, no entanto, contrasta com o volume de interações anteriormente mantidas: havia troca de mensagens com gerentes, envio de relatórios, aprovação de campanhas, revisão de páginas e acompanhamento direto de metas. Não vamos colocar os prints dessas conversas pois isso poderia expor os afiliados que agora se preparam para lutar por seus direitos.

E se ninguém reagir?
Se essa prática passar despercebida — ou pior, for validada judicialmente — o que impede que outras plataformas façam o mesmo?
A indústria de afiliados se sustenta em confiança, previsibilidade e retorno justo sobre o investimento. Sem isso, qualquer esforço é descartável. E todo afiliado vira temporário. Substituível.
O que está em jogo aqui não é apenas um contrato. É o modelo de negócios de uma indústria inteira — e o grau de responsabilidade exigido de plataformas estrangeiras que atuam e lucram no Brasil.
O presente artigo visa contribuir no debate acerca dos direitos dos afiliados e sua relação com casas de apostas e torcemos para que as partes encontrem um acordo que sirva a ambas e também sirva de modelo para pacificação de outros conflitos semelhantes no setor.
Nota editorial:
Este texto apresenta interpretações jurídicas e possíveis teses em debate, com base em documentos e relatos de afiliados que preparam uma ação coletiva contra a empresa mencionada. A empresa foi contatada e respondeu, por meio de sua assessoria, que não irá comentar o caso. Apesar da negativa, o espaço segue aberto para a inclusão de posicionamentos ou esclarecimentos oficiais, a qualquer momento. Também deixaremos aberto nosso portal para publicação de matéria nova sobre o tema caso tenhamos uma posição da empresa.