O que está (realmente) em jogo no debate sobre o modelo de afiliação nas apostas
- Fred Azevedo

- 16 de jun.
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de jun.
O relatório final da CPI das Bets morreu — mas deixou um rastro revelador: há uma visão política em formação que enxerga o marketing de afiliados como parte do problema. O mercado precisa reagir. Com ética, não com negação.
Em meio à avalanche de denúncias frágeis, depoimentos performáticos e desinformação generalizada, a CPI das Bets terminou sem força política, sem aprovação do relatório e, principalmente, sem o mínimo de seriedade institucional. Mas isso não significa que o conteúdo produzido deva ser descartado.
Pelo contrário: o que se escreveu ali — ainda que mal formulado — revela como pensa parte do sistema político brasileiro. E é com base nesse pensamento que virão, mais cedo ou mais tarde, as tentativas reais de proibição, restrição e criminalização de práticas do mercado de apostas.
No centro desse possível embate? O modelo de revenue share, a remuneração por percentual do lucro líquido gerado pelas apostas indicadas por influenciadores e afiliados.
A cláusula que acendeu o debate: “30% sobre o lucro da casa”
O relatório da CPI traz, em sua página 110, um exemplo extraído de um contrato publicitário real. Nele, uma influenciadora digital receberia 30% do lucro líquido gerado pelas apostas realizadas por meio de seu link — após a dedução dos prêmios pagos aos jogadores.
A interpretação da CPI foi direta:
“Essa prática é claramente abusiva, podendo provocar demasiado estímulo no influenciador em convencer seus seguidores a efetuarem apostas, em quantidade ou valores excessivos, nos agentes que o patrocinam.”
Trata-se do modelo mais comum de afiliação em iGaming: revenue share sobre GGR (Receita Bruta de Jogo) ou NGR (Receita Líquida de Jogo), prática consolidada no marketing digital global.

A crítica moral: justa ou moralista?
A lógica do relatório é simples (e perigosa): se o influenciador ganha sobre o que o apostador perde, há incentivo para manipular o discurso e induzir apostas excessivas.
O problema dessa visão está na redução simplista da natureza das apostas a um jogo de soma zero. É como afirmar que agências de turismo lucram com o “desgaste emocional” das férias, ou que empresas de transporte ganham com os acidentes nas estradas.
Sim, toda comissão vem de um fluxo de capital. Mas isso não implica, por si só, abuso. O que determina o abuso é a falta de transparência, a promessa enganosa, o incentivo irresponsável — e isso pode ocorrer com qualquer modelo, inclusive o CPA (Custo Por Aquisição).
Revenue share nas apostas: o que é, como funciona e por que ainda existe
O modelo de revenue share funciona, grosso modo, assim:
O influenciador ou afiliado recebe um percentual do lucro líquido da operadora sobre os jogadores indicados;
O cálculo se baseia no GGR (receita bruta de jogo) ou NGR (após custos, bônus, taxas etc.);
O modelo pode ser vitalício ou limitado a um período;
É ajustado por turnover, taxas de retenção, retorno de bônus, entre outros critérios.
É o modelo dominante no marketing de performance, não só em apostas, mas em SaaS, fintechs, apps e e-commerce.
O modelo é o problema? Ou é a ausência de compliance?
É fácil vilanizar o modelo. Mas o verdadeiro problema não está no revshare em si — está no descontrole sobre como ele é usado.
O que vimos nos piores casos da CPI não foi abuso por estrutura de comissão. Foi:
Influenciador usando conta demo sem informar;
Publicidade disfarçada de conteúdo espontâneo;
Afiliado ensinando supostos “métodos infalíveis”;
Omissão de risco, ausência de disclaimer, apelo à vulnerabilidade.
É isso que precisa ser regulado — e combatido.
A verdade inconveniente: todo modelo parte do mesmo lugar
Não importa se o contrato é CPA, CPL, fixo mensal ou revshare. O dinheiro vem do mesmo fluxo: a margem operacional da casa.
Portanto, demonizar o revshare enquanto mantém-se bônus agressivo para criadores em modelo fixo é hipocrisia.
A questão não é “quanto ganha”. É o que é dito para justificar esse ganho — e como o conteúdo é apresentado ao consumidor final.
O relatório foi rechaçado. Mas a visão permanece
Apesar do relatório da CPI não ter sido aprovado, ele deixou um rastro institucional: é a primeira vez que o Congresso escreve, formalmente, que o modelo de afiliação por revshare pode ser considerado abusivo.
Pode não virar lei agora. Mas servirá de base para:
Propostas populistas futuras;
Decisões judiciais contra influenciadores;
Reações regulatórias mal informadas;
Campanhas políticas com apelo “moralizador”.
O mercado não pode simplesmente ignorar esse sinal.
O risco da negação: achar que o modelo é “intocável”
Defender o revshare como prática legítima é importante. Mas defender o modelo sem reconhecer seus abusos históricos é suicídio reputacional.
É preciso admitir:
Que há influenciadores que monetizaram exclusivamente sobre a compulsão;
Que há empresas que fecharam os olhos para isso;
Que parte do mercado ainda opera como se estivesse em 2019.
O mercado mudou. E a percepção pública também.
O que pode vir: regulação do discurso, não da comissão
Ao invés de atacar o revshare, o caminho mais eficaz seria:
Exigir clareza sobre tipo de comissão usada;
Proibir conteúdo sem disclaimer explícito;
Estabelecer regras de transparência de saldo e tipo de conta;
Criar classificação publicitária para campanhas de apostas;
Fiscalizar a entrega real dos Termos da Lei nº 14.790/2023 e da Portaria SPA/MF nº 1.231/2024.
O conteúdo precisa ser regulado. Não o modelo.
Conclusão: o problema não é ganhar 30%. É enganar 100% do tempo.
A grande mentira da CPI das Bets foi fingir que o problema das apostas está na forma de pagamento dos influenciadores.
Como se a indústria publicitária fosse ética enquanto paga por clique — mas se tornasse criminosa quando paga por retenção.
O revshare, bem usado, recompensa engajamento de qualidade, relacionamento de longo prazo e base fiel. Mal usado, estimula manipulação, ganância e vício. Como qualquer modelo.
A questão é: vamos educar e evoluir — ou esperar que o Estado venha legislar sobre o que nem entende?
Porque se o mercado não se regula, o populismo regula por ele. E o resultado disso, todos nós já sabemos.


