CIDE-Bets: o tributo do cinismo
- Fred Azevedo
- há 3 dias
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Atualizado: há 2 dias
Como grandes confederações querem empurrar a conta para um setor que nem representam.
Documento elaborado por cinco grandes confederações empresariais propõe ao governo taxar apostas em 15% sobre transferências, escancarando a lógica perversa de um país onde quem cumpre a lei é punido, e quem finge defender o social só protege a própria isenção.

“Se cigarros e bebidas alcoólicas são tributados seletivamente, por que as apostas não?”— diz a proposta CIDE-Bets
O mercado de apostas legalizadas no Brasil — que mal saiu do berço — acaba de ser enquadrado como bode expiatório da política fiscal.
A proposta entregue por cinco confederações empresariais ao presidente Lula, publicada no dia 13 de junho, sugere a criação de um novo tributo federal: a CIDE-Bets (de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), que incidiria sobre as transferências feitas por jogadores às plataformas legais, à alíquota de 15%, já a partir de 2026.
O argumento? Reduzir o crescimento “excessivo” das apostas no país e gerar R$ 25,2 bilhões anuais de arrecadação.
A realidade? Uma tentativa de desviar o foco de seus próprios setores, reduzir a carga de quem assina a proposta — e jogar sobre um setor regulamentado a conta da omissão histórica do Estado no combate ao mercado ilegal.
O que está sendo proposto: uma nova CIDE para onerar o jogador na origem
A proposta técnica da CIDE-Bets é clara:
Incidência sobre qualquer transferência feita por pessoas físicas para plataformas de apostas de quota fixa; |
Alíquota de até 15% (modelo sugerido: 15% cheio); |
Fato gerador: transferência, não aposta; |
Destinação da arrecadação: saúde e educação (em tese); |
Vigência prevista: 1º de janeiro de 2026, para respeitar a anterioridade tributária |
A CIDE-Bets não substituiria nenhum tributo já existente. Ela se somaria ao atual conjunto de impostos sobre operadoras e jogadores.
Uma proposta que desafia a Constituição — e atropela a lei em vigor
Especialistas em direito tributário já apontam que a CIDE-Bets, como foi formulada, fere diversos princípios constitucionais e contraria o próprio arcabouço legal vigente.
A Constituição Federal (Art. 149) autoriza a criação de CIDEs pela União, mas exige que elas estejam vinculadas a finalidades específicas, como intervenção econômica ou interesse coletivo. No entanto, ao propor a CIDE-Bets como mero instrumento arrecadatório para “ajustar contas públicas”, o projeto incorre em possível desvio de finalidade, o que compromete sua legitimidade jurídica.
Além disso, o setor de apostas já é alvo de uma estrutura tributária própria, definida pela Lei nº 14.790/2023, que regulamenta a atividade, institui o gaming tax sobre o GGR (Receita Bruta de Jogo) e exige o cumprimento de obrigações acessórias que vão de auditorias externas a ferramentas obrigatórias de Jogo Responsável.
Ao adicionar uma CIDE de 15% sobre a transferência do usuário, antes mesmo de qualquer receita ser gerada, o projeto cria uma situação de bitributação indireta, uma espécie de dupla incidência que recai sobre fases distintas do mesmo fato gerador — o que pode ser contestado judicialmente com base no princípio do não confisco (Art. 150, IV da CF).
Do ponto de vista do consumidor, a medida agrava ainda mais a assimetria: impõe ao jogador comum um tributo oculto, cobrado antecipadamente, sem clareza sobre sua natureza e sem o mínimo de transparência.
Isso viola frontalmente o Art. 6º, III do Código de Defesa do Consumidor, que assegura o direito à informação adequada e clara sobre encargos e tributos.
Por fim, ao atingir diretamente contratos já firmados com o Ministério da Fazenda — como os de outorga de operação por cinco anos — a nova carga tributária coloca em risco o princípio da segurança jurídica e da boa-fé regulatória, fragilizando a credibilidade do ambiente legal.
Quanto já se paga: a conta real da operação regulada
Hoje, operadoras legais já arcam com:
GGR: 18% sobre a receita líquida de apostas;
PIS/Cofins: 9,25% sobre a receita;
IRPJ/CSLL: 34% sobre o lucro;
ISS municipal: entre 2% e 5%;
Imposto de Renda do jogador: 15% sobre prêmios líquidos.
A somatória real da carga ultrapassa 50% da margem operacional das casas — sem contar custos com auditorias, plataformas, mídia, suporte, ferramentas de jogo responsável e outorga (R$ 30 milhões por 5 anos de licença).
A CIDE adicionaria 15% de impacto direto sobre o valor depositado — mesmo antes de qualquer aposta ser feita.
A lógica do "desincentivo": o argumento que esconde o real propósito
O documento das confederações justifica o imposto como “medida para frear o avanço de uma atividade com impactos sociais negativos”, equiparando apostas a cigarro e álcool.
A estimativa apresentada é a seguinte:
Volume de transferências hoje: R$ 269 bilhões/ano;
Aplicação da CIDE: reduziria esse volume para R$ 167 bilhões;
Gastos reais em apostas cairiam 22,5%, segundo estudo da LCA citado no texto.
Mas essa visão esconde pontos centrais:
Os dados de “transferência” incluem repasses entre carteiras, reaportes e valores que sequer são apostados;
O cálculo assume elasticidade irreal entre imposto e comportamento, ignorando que parte significativa dos apostadores migraria para casas ilegais, sem CIDE, sem GGR, sem nada;
Não há uma linha sequer sobre fiscalização, bloqueio de piratas, rastreabilidade ou política nacional de proteção ao apostador.
O verdadeiro objetivo: preservar isenções dos próprios setores
Entre as confederações signatárias da proposta estão:
CNI (indústria)
CNC (comércio e serviços)
CNseg (seguros)
CNT (transportes)
Confederação das Instituições Financeiras (ex-CNF)
Todas defendem, no mesmo documento:
Desvinculação do salário mínimo do BPC, abono e seguro-desemprego
Teto para dedução com saúde no IRPF;
Revisão de regras da previdência básica (RGPS);
Contingenciamento de políticas públicas para equilibrar o orçamento.
O que isso significa na prática? Eles querem manter benefícios fiscais para seus setores, redirecionando a cobrança para um mercado jovem, altamente tributado e que sequer está representado entre os proponentes.
O impacto real: migração para piratas e efeito reverso
Se a CIDE-Bets for aprovada:
O custo da aposta legal sobe na entrada — antes mesmo da experiência do usuário começar;
Casas ilegais, hospedadas fora do país e acessíveis com dois cliques, ficam ainda mais competitivas;
Jogadores vulneráveis serão direcionados para plataformas sem política de autoexclusão, sem suporte, sem saque, sem CPF — e, muitas vezes, sem lastro.
O resultado: um apagão da regulação, com desmonte progressivo da formalização e perda de arrecadação em cadeia.
Não se trata de proteger a sociedade. Trata-se de reorientar o ônus fiscal
É absolutamente legítimo que o Brasil repense sua estrutura tributária diante da crise fiscal.
Mas o que está proposto aqui não é reforma. É desoneração de um grupo com forte lobby, à custa de outro setor que ainda engatinha — e que já entrega bilhões em outorga e taxação.
Se o objetivo é arrecadar mais, que se amplie a base. Que se enfrente o mercado ilegal. Que se estruture a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) para fiscalizar de verdade.
Criar tributo sobre quem já paga — e fingir que isso é "instrumento de combate ao vício" — é cinismo fiscal disfarçado de responsabilidade social.
Conclusão: uma proposta tecnicamente sofisticada, mas politicamente perversa
A proposta da CIDE-Bets impressiona pelo verniz técnico: projeções, elasticidade de consumo, literatura econômica, análise do comportamento tributário.
Mas peca — gravemente — por:
Ignorar o mercado ilegal;
Excluir a perspectiva dos operadores regulados;
Não considerar a função fiscal da reforma tributária de 2027, que já prevê imposto seletivo sobre apostas;
Sobrepor tributos de finalidade semelhante (CIDE + IS) no mesmo setor.
Mais do que desequilibrar o modelo tributário, a CIDE-Bets compromete a credibilidade do ambiente regulado — e transforma o mercado legal em bode expiatório de um problema que o próprio Estado se recusa a enfrentar.
Nota editorial
Este artigo integra o esforço do Portal Fred Azevedo para acompanhar, com seriedade e profundidade técnica, os impactos institucionais, jurídicos e econômicos do avanço (ou retrocesso) da regulação de apostas no Brasil.
A proposta da CIDE-Bets expõe uma distorção grave: fingir proteger o social, quando na prática se transfere a carga para quem já cumpre a lei. Nosso compromisso permanece o mesmo: fiscalizar quem tributa, cobrar quem regula e defender, sempre, o interesse público com informação clara, sem populismo e sem omissão.