“Jogo não é o vilão. O descuido é.” – Rafael Ávila e os desafios do cuidado com quem aposta
- André Mendes
- 3 de jun.
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de jun.
Em meio ao crescimento acelerado das apostas online no Brasil, uma questão permanece na sombra: o cuidado com a saúde mental dos jogadores. Para além das estatísticas, há histórias reais de compulsão, prejuízo e sofrimento psíquico que ainda não recebem a devida atenção institucional.
Rafael Ávila (CRP 13/11.786), psicólogo clínico com atuação direta no setor de apostas esportivas, combina formação técnica com vivência prática no mercado.
Formado pela Universidade Federal da Paraíba, com especialização em Terapia Cognitivo Comportamental pela PUC-RS, Rafael foi gerente administrativo de uma empresa de investimentos em apostas esportivas e estagiário em uma desenvolvedora de software, onde implementou práticas de saúde mental no trabalho.
Hoje, atende pacientes que se identificam com a dependência em jogos de azar e é voluntário em projetos de acolhimento para pessoas com problemas relacionados ao jogo.
Nesta entrevista exclusiva ao portal Fred Azevedo, ele compartilha sua experiência e visão sobre jogo responsável, políticas públicas e os impactos emocionais do setor.

PERFIL E POSICIONAMENTO
Portal FA: Você é contra ou a favor da legalização do jogo? Por quê?
R: A favor, embora eu prefira utilizar o termo "regulamentação". Acredito que a única forma de termos acesso a dados confiáveis, elaborar políticas públicas eficientes e ter controle sobre práticas abusivas do setor é com uma regulamentação robusta, com foco na proteção ao jogador e principalmente em formas de prevenir o Transtorno do Jogo [ludopatia].
Portal FA: Você considera que é possível apostar de forma saudável?
R: É possível apostar de forma responsável, sem ter sua vida afetada negativamente por isso, mas nem todo mundo será capaz disso. Isso não se trata de pessoas com muito ou pouco controle emocional. Há pessoas que têm predisposição genética, ou comorbidades associadas, que facilitem o desenvolvimento do vício.
Portal FA: Já tratou pacientes com problemas relacionados a apostas online? Como começou a notar essa demanda?
R: Vários. Centenas no consultório particular e milhares através da Associação de Proteção e Apoio ao Jogador (APAJ) e o SOS Jogador. A demanda sempre existiu, mas passou a aumentar bastante a partir da pandemia.
Portal FA: Como você vê o papel dos jogos online no desenvolvimento de transtornos de impulso?
R: A grande oferta e o fácil acesso são coisas que, infelizmente, facilitam o comportamento compulsivo e o desenvolvimento do transtorno. É algo muito recorrente.
Portal FA: Há alguma diferença entre a compulsão por jogo físico e jogo online, do ponto de vista clínico?
R: Não. Tratam-se da mesma doença e têm o mesmo tratamento. O que muda são as formas de prevenção e evitação de recaídas, por conta do acesso.
O psicólogo parte de uma premissa que também norteia nosso posicionamento editorial: não se trata de ser contra o jogo, mas a favor da responsabilidade. Rafael é direto ao afirmar que a regulação é essencial para permitir o controle e a proteção do jogador.
E reforça: jogar pode ser saudável, desde que feito com clareza de propósito e com freios bem definidos. O problema não está no jogo, mas na negligência com quem não consegue parar.
IMPACTO DO JOGO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Portal FA: Na sua visão, o Brasil está preparado para lidar com os impactos sociais da liberação das apostas online?
R: Acho que nenhum país nunca está preparado para lidar com o impacto que uma ação dessa magnitude requer. A regulamentação ajuda, mas ainda há uma destinação muito pequena de recursos para saúde mental e assistência social.
Portal FA: A Lei nº 14.790/2023 determina a criação de políticas públicas para o jogo responsável. O Ministério da Saúde tem feito sua parte?
R: Não há nenhuma política pública que tenha sido divulgada. Há informação de que o Ministério já começou a capacitar trabalhadores do CAPS, mas ainda não vimos ações efetivas.
Portal FA: O que falta hoje na estrutura do SUS para acolher jogadores em sofrimento psíquico?
R: Falta maior divulgação de que essas pessoas têm direito a tratamento, capacitação específica para os trabalhadores, grupos de apoio direcionados e ferramentas de prevenção à recaída.
Portal FA: Deveria haver uma campanha nacional sobre os riscos do jogo? Quem deveria liderar isso?
R: Com certeza. E não só uma. Campanhas rotineiras, com mensagens claras sobre Jogo Responsável, canais de ajuda e instruções práticas para quem está em sofrimento. Isso deveria ser conduzido pelo Ministério da Saúde em parceria com a SECOM.
Portal FA: A formação dos profissionais da atenção primária em saúde mental está preparada para lidar com casos de ludopatia?
R: Atualmente, não. Existe muita desinformação e estigma, apesar de alguns avanços.
O cenário descrito por Rafael é preocupante: uma regulamentação que caminha, mas uma política pública que não acompanha.
O jogo está sendo liberado, mas o cuidado com quem sofre com ele continua terceirizado a projetos voluntários. Se o Estado quer arrecadar, precisa também cuidar. Não é apenas uma questão de coerência — é uma exigência da própria Lei 14.790/2023.
PUBLICIDADE E INFLUÊNCIA SOCIAL
Portal FA: Qual sua opinião sobre a tentativa de restringir ou proibir a publicidade de casas de apostas?
R: Proibir não é o melhor caminho, pois fortalece plataformas clandestinas. Mas precisamos de regras claras, mensagens de risco mais efetivas e limites para o alcance aos menores de idade.
Portal FA: Você acredita que influenciadores contribuem para o aumento da compulsão?
R: Muito. Mostram apenas vitórias, ganhos altos, e estimulam o jogo como hábito diário.
Portal FA: A propaganda de jogo deveria ser equiparada à propaganda de álcool ou cigarro?
R: Sim. Com forte regulação, sem esconder os riscos, mas permitindo sua existência.
Portal FA: O aviso “jogue com responsabilidade” tem algum efeito real do ponto de vista psicológico?
R: Não. Estudos científicos mostram que esse tipo de mensagem não reduz o comportamento de risco nem conscientiza de fato.
Portal FA: Qual o impacto de personagens públicos — artistas, atletas, youtubers — fazendo publicidade de jogos para jovens?
R: É um incentivo forte. O brasileiro confia demais nesses perfis, e isso pode levar pessoas muito jovens a começarem a jogar precocemente.
É aqui que a conversa com Rafael ganha tom de alerta.
Não há espaço para ingenuidade: publicidade funciona. E quando mal regulada, ela adoece.
Jogar não é crime, mas transformar influenciador em isca para público vulnerável é — ou deveria ser — uma infração ética grave. O setor precisa amadurecer, e isso inclui parar de fingir que “jogue com responsabilidade” é suficiente.
TRATAMENTO E PREVENÇÃO
Portal FA: Como se diagnostica a ludopatia? Há sinais de alerta que amigos ou familiares podem notar?
R: O diagnóstico deve ser feito por um profissional. Mas sinais incluem perda de controle, dívidas, mentiras, irritabilidade e isolamento.
Portal FA: Quais são os principais caminhos de tratamento hoje disponíveis?
R: CAPS, psicoterapia, grupos como SOS Jogador, Jogadores Anônimos, IAA, e também psicólogos particulares.
Portal FA:lExiste cura ou apenas controle?
R: Falamos em remissão, não cura. A pessoa pode parar, mas uma recaída costuma reativar o padrão compulsivo.
Portal FA: A autoexclusão voluntária realmente funciona? Ou é só um paliativo?
R: Funciona como barreira inicial, mas sozinha não é suficiente. Sem um sistema centralizado com bloqueio de CPF, sua eficácia é limitada.
Portal FA: Que mensagem você deixaria para quem está sentindo que perdeu o controle do jogo, mas ainda não pediu ajuda?
Você não está sozinho. Reconhecer que perdeu o controle já é um grande passo. Procure ajuda. Existe acolhimento, tratamento e possibilidade de reconstrução da vida.
O Brasil já tem um mercado robusto de apostas.
O que falta é um ecossistema de acolhimento para quem desmorona dentro dele. A autoexclusão é um começo, mas precisa ser ampliada, integrada e fiscalizada.
E mais do que tudo, o tema precisa sair do armário. Transtorno do jogo não é fraqueza — é uma condição reconhecida, tratável, e que exige resposta institucional à altura.
FECHAMENTO EDITORIAL
Rafael não fala de utopias.
Fala de passos práticos, acessíveis e urgentes. Não se trata de demonizar o jogo, nem de salvar todo jogador.
Trata-se de reconhecer que, sem políticas públicas sérias, o Brasil está entregando um sistema de apostas sem freio, e ignorando, de forma institucionalizada, o sofrimento de quem perde mais do que dinheiro.
O jogo pode ser uma escolha. Mas o cuidado com quem adoece não pode ser opcional. Procure ajuda.