Renda disponível, juros abusivos e o teatro moral contra as apostas
- Fred Azevedo
- 13 de jun.
- 6 min de leitura
Atualizado: há 5 dias
Enquanto apostas viram vilãs de R$ 20, bancos e varejo seguem cobrando juros abusivos de 300% ao ano — com tapinha nas costas da imprensa.
De um lado, uma indústria recém-regulada, cheia de problemas e ainda longe do ideal. De outro, um sistema financeiro consolidado, blindado por décadas de lobby e conivência institucional. No meio disso, surge o teatro moral da vez: proteger o brasileiro do "perigo das apostas".
Atores? Os mesmos que vendem fogão em 36 vezes com juros embutidos e depois te cobram R$ 200 de atraso por uma fatura de R$ 800.
A ironia não poderia ser mais escancarada: o país com um dos sistemas de crédito mais predatórios do planeta resolveu que agora é hora de dar lição de moral — justo nas apostas, que ao menos admitem o risco de perder.

Crédito para consumir, culpa para jogar
Vamos aos números que escancaram o paradoxo.
Em 2023, o Brasil registrou um spread bancário de 31,5%, segundo dados compilados pelo World Bank Group com base em informações do FMI — a terceira maior taxa do mundo, atrás apenas de Madagascar e Zimbábue. Esse índice, que representa a diferença entre o que os bancos pagam a quem deposita e o que cobram de quem toma crédito, é um dos mais perversos da economia brasileira (fonte: artigo de Fernando Vieira no JOTA.info e BNLData).
Ou seja: o brasileiro é penalizado em dobro. Recebe pouco quando poupa. Paga muito quando precisa. E isso é vendido como normal.
Enquanto isso, o mesmo brasileiro que é incentivado — por publicidade, algoritmos e metas agressivas de consumo — a parcelar celular em 24 vezes ou renovar o guarda-roupa com limite pré-aprovado, vira alvo de julgamento público quando resolve apostar R$ 20 numa partida do seu time.
A reação institucional é conhecida: Se ele perde no jogo, foi imprudente. Se ele afunda no rotativo do cartão, só faltou “educação financeira”.
A hipocrisia está no tratamento. O problema nunca é o sistema que oferece crédito a juros extorsivos, mas o indivíduo que “não soube usar”. Já com as apostas, o risco é visto como falha moral por definição — mesmo quando feito de forma pontual, consciente e dentro da legalidade.
Esse moralismo seletivo não é coincidência. É estratégia.
O moralismo seletivo do varejo bancarizado
Não são só os bancos que se levantaram como novos guardiões da moral econômica. O varejo também entrou no palco — de jaleco branco e discurso ético na ponta da língua. Agora, quem financia televisão em 30 vezes com juros implícitos se diz preocupado com “os perigos do jogo online”.
A verdade é que boa parte do varejo brasileiro se transformou, ao longo dos últimos anos, em operadora de crédito disfarçada de loja. A venda do produto virou isca — o lucro está no financiamento.
Segundo o Varejo Finance Report 2025, citado por Fernando Vieira, os varejistas com operações financeiras integradas cresceram, em 2024, 9,4% em receita líquida. Já aqueles que dependem apenas da venda direta? Ficaram em 3,1%. A diferença vem de onde? Cartões private label, crediários, seguros embutidos e carnês com taxas que ultrapassam facilmente os três dígitos ao ano.
É assim que funciona: O consumidor compra a prazo porque “cabe no bolso”.O lojista lucra porque o crédito não cabe no contrato.E quando o cliente atrasa? Vem cobrança automática, juros de mora e — claro — uma cartilha sobre “consumo consciente”.
Nos bastidores, muitos desses grupos têm pressionado o Congresso e o Executivo por regras mais duras contra as apostas. O discurso é bonito: evitar que o brasileiro comprometa sua renda com jogos de azar. Mas o interesse é outro. Eles não querem proteger o bolso do consumidor. Querem manter o monopólio sobre como ele gasta.
Essa disputa é sobre o destino da renda disponível. E o varejo — especialmente o que opera como banco — não está disposto a abrir mão de sua fatia.
Apostas precisam de freios, não de hipocrisia
Que fique claro: o setor de apostas não é inocente nessa história.
Casos de ludopatia crescem. Casas licenciadas ainda falham na identificação de padrões compulsivos. Plataformas piratas seguem operando impunemente, com marketing agressivo e zero controle sobre o jogador. Fingir que tudo está resolvido seria desonesto — e perigoso.
Mas é justamente por reconhecer esses riscos que o Brasil aprovou uma das legislações mais exigentes do mundo. A Lei nº 14.790/2023 obriga operadores licenciados a implementar políticas concretas de jogo responsável. Não se trata mais de “falar bonito” — é lei. E o descumprimento pode levar à cassação da licença.
Além disso, a Portaria SPA/MF nº 1.231/2024, assinada pelo Ministério da Fazenda, detalha as ferramentas que devem estar disponíveis para todos os jogadores: autoexclusão voluntária, limites de tempo, limites de perda, controle de comportamento, verificação facial e protocolos de monitoramento contínuo desde o cadastro.
Nenhuma instituição financeira ou loja de departamento é obrigada por lei a oferecer esse nível de proteção contra compulsividade.
E ainda assim, são esses setores que agora tentam se colocar como modelo de integridade.
Mais uma vez: o problema não é regular — é quem está querendo regular o quê.
Quando o mesmo sistema que naturalizou juros de 300% resolve apontar o dedo para um setor que, ao menos, já reconhece seus riscos, o que temos não é proteção ao consumidor.
É cinismo institucionalizado.
O que realmente incomoda?
A resposta talvez não esteja no “risco de endividamento”, como se tenta vender no debate público, mas em algo muito mais sensível aos grandes grupos financeiros: o destino da renda disponível do brasileiro.
Em 2024, segundo dados citados por Fernando Vieira, o mercado de cartões de crédito movimentou mais de R$ 4 trilhões — o equivalente a 45% do consumo das famílias brasileiras. Trata-se de uma engrenagem bilionária que alimenta bancos, varejistas e emissores comissionados em cada transação, cada atraso, cada refinanciamento.
Agora, com a expansão das apostas online — e o início da regulação oficial — parte desse dinheiro começa a circular de maneira direta, sem intermediários tradicionais.
Não passa pelo banco, não rende tarifas mensais, não gera spread, não depende de avaliação de risco nem de concessão de crédito.
O incômodo é esse.
É ver o jogador decidir sozinho onde gastar R$ 20 — sem precisar do “ok” do gerente.
O discurso contra as apostas não vem, portanto, só de uma preocupação moral. Vem de quem teme perder o controle sobre o fluxo financeiro da população.
No jargão do setor, chamam isso de “desintermediação”.
Na prática, é só o consumidor decidindo por conta própria — algo que, historicamente, incomoda quem sempre viveu de intermediar.
Quem banca quem?
O sistema financeiro brasileiro cobra 300% de juros, empurra crédito como se fosse presente e lucra com a inadimplência de quem não consegue acompanhar o próprio extrato. Depois, quando o cliente quebra, ainda o culpa por “não saber usar o cartão”.
E é esse mesmo sistema que agora posa de tutor moral do cidadão que apostou R$ 20 no fim de semana.
No jogo, o risco é declarado. Você sabe que pode perder. Existe regra clara, exigência de limite, obrigação de controle de danos. É um setor que precisa — e deve — ser fiscalizado com rigor, sim. Mas que ao menos reconhece publicamente o risco que representa.
Já o crédito abusivo no Brasil se esconde atrás de slogans publicitários, metas trimestrais e uma linguagem pasteurizada de “educação financeira”. Não protege o consumidor. Explora sua vulnerabilidade.
A grande diferença? Nas apostas, o tombo é visível. No crédito, ele vem parcelado — e com brinde.
O que vemos não é um embate entre moral e vício. É uma disputa por quem dita as regras de acesso ao dinheiro do brasileiro. Quem controla a renda, controla o comportamento. E o que mais assusta os donos do apito não é a aposta em si.
É o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, o jogador comum está decidindo sozinho o que fazer com seu dinheiro.
E isso — isso sim — eles não sabem tolerar.
Com base no artigo original de Fernando Vieira, presidente executivo do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR), publicado no portal JOTA.info e no BNLData.
Nota editorial
Este artigo analisa criticamente o paradoxo exposto por Fernando Vieira — presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável — sobre o suposto embate entre o risco das apostas e os abusos históricos do sistema de crédito brasileiro.
A equipe editorial do portal considera legítima a preocupação com a saúde financeira dos cidadãos. Mas entende que essa preocupação não pode ser instrumentalizada por setores que, há décadas, lucram com juros abusivos, crédito predatório e desinformação institucionalizada.
A regulação das apostas é necessária, urgente e bem-vinda. O que se contesta aqui é a seletividade do discurso — e o oportunismo de quem busca manter o monopólio sobre o bolso do brasileiro sob o pretexto de protegê-lo.
As opiniões expressas ao longo do texto respeitam as fontes originais e ampliam o debate público, com base em dados, leis vigentes e análise editorial independente.