STF proibiu o uso do recurso; a SPA proibiu o pobre
- Fred Azevedo

- 3 de out
- 7 min de leitura
A Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA/MF) publicou nesta quarta-feira (1º/10) a Instrução Normativa nº 22/2025, que altera a Portaria nº 1.231/2024 e cria o chamado “Módulo de Impedidos” no SIGAP. A medida determina que beneficiários do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) não possam manter contas ativas em plataformas de apostas licenciadas, obrigando operadoras a encerrar cadastros identificados e devolver saldos.
A justificativa oficial é o cumprimento das decisões do Supremo Tribunal Federal (ADIs 7721 e 7723), que vedaram o uso de recursos assistenciais em apostas. Mas a forma como a SPA decidiu aplicar essa diretriz levanta um problema grave: o Supremo nunca proibiu o pobre de jogar. O que decidiu foi algo mais restrito e razoável — impedir que recursos do Bolsa Família, do BPC e de outros programas assistenciais fossem usados em apostas. O alvo era o dinheiro, não o CPF.
“(...) deferiram parcialmente as medidas cautelares requeridas, (i) conferindo interpretação conforme à Constituição Federal ao artigo 9º da Lei n. 14.790/2023, para que a regulamentação elaborada pelo Poder Executivo Federal especificamente prevista na Portaria SPA/MF n. 1.231, de 31 de julho de 2024, tenha aplicação imediata, no tocante às medidas supramencionadas referentes à publicidade quanto às crianças e adolescentes, bem como (ii) para que sejam implementadas medidas imediatas de proteção especial que impeçam a participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e congêneres, até a conclusão do julgamento de mérito das referidas ações diretas de inconstitucionalidade.”
A lógica era cristalina: proteger o destino dos recursos, impedir que verbas de caráter alimentar fossem drenadas para o jogo. Em nenhuma linha se falou em banir beneficiários pela sua condição social.
Ao transformar essa diretriz em veto por CPF, a SPA extrapolou o que o Supremo determinou — e inaugurou, na prática, um sistema de exclusão social dentro do mercado regulado.

SPA decidiu proibir o pobre de jogar
A Secretaria de Prêmios e Apostas resolveu ir muito além do que o Supremo havia determinado. Em vez de criar mecanismos para rastrear a origem do dinheiro e impedir que os valores do Bolsa Família ou do BPC fossem desviados para o jogo, escolheu o atalho mais simples: transformar o beneficiário em impedido.
Na prática, instituiu um sistema de consulta automática pelo CPF. A cada cadastro, a cada primeiro login do dia e até em revisões periódicas, as operadoras são obrigadas a verificar se o usuário aparece como beneficiário de programas sociais. Se o nome estiver na lista, o sistema retorna apenas uma resposta: “impedido”. A consequência é imediata — contas encerradas, apostas em aberto canceladas e saldos devolvidos, muitas vezes sem que o jogador tenha sequer usado recursos do benefício.
O que era para ser proteção virou exclusão. O que deveria ser cautela virou carimbo social. A diretriz original do STF era proteger o recurso; a SPA decidiu proibir o beneficiário. O alvo deixou de ser o dinheiro e passou a ser a condição social do cidadão.
De proteção ao recurso à proibição de pessoas
A decisão da SPA não parou no mecanismo de bloqueio automático. Ao alterar a Portaria nº 1.231/2024 e incluir de forma expressa a vedação à participação de beneficiários, o órgão deu um passo além: transformou uma medida que poderia ser provisória em regra de estrutura do mercado. Não estamos mais diante de um ajuste operacional para proteger recursos assistenciais, mas de uma escolha política de excluir um grupo social inteiro do setor regulado.
Esse é o ponto que não pode ser diluído: o STF proibiu o uso do recurso; a SPA proibiu o pobre. A diferença é abissal. O Supremo tratou de fluxos financeiros; a SPA passou a vigiar identidades civis. O foco deixou de ser a origem do dinheiro e passou a ser a condição social do cidadão.
É verdade que o dinheiro é fungível — uma nota de R$100 recebida do Bolsa Família não se distingue de uma nota de R$100 recebida do salário. Isso torna impossível separar, na prática, qual real foi usado para pagar uma aposta. Mas a fungibilidade não deveria servir de justificativa para criminalizar o pobre, e sim de alerta para que o governo construísse mecanismos inteligentes de regulação. O caminho honesto seria travar a saída direta das contas-benefício para plataformas de apostas, sinalizar transferências oriundas desses pagamentos, criar filtros em provedores de pagamento e exigir auditorias cruzadas. Tudo isso demandaria esforço técnico e coordenação com o Banco Central. Daria trabalho, mas preservaria direitos sem estigmatizar pessoas.
O governo, no entanto, preferiu a rota mais barata e mais excludente: ergueu uma barreira de CPFs e carimbou milhões de brasileiros como “impedidos”. Transformou uma decisão que falava em proteger recursos em um veto a cidadãos.
E aqui entra a reflexão inevitável: se o próprio Estado optou por dar dinheiro vivo ao beneficiário — e não vouchers carimbados para alimentação ou energia, como alguns defendiam —, não seria lógico reconhecer que esse dinheiro passa a ser da pessoa?
O que se espera de uma política social não é apenas garantir a sobrevivência mínima, mas também respeitar a autonomia de quem a recebe. Proibir que um beneficiário use cinco ou dez reais para uma aposta, enquanto o mesmo Estado permite que ele compre qualquer outro bem de consumo, é uma ingerência seletiva, moralista e humilhante.
A Causa Operária foi direta ao tratar do tema: se o governo optou por transferir o benefício em dinheiro, é porque esse valor passa a ser do beneficiário — e cabe a ele decidir como utilizá-lo.
Transformar essa escolha em objeto de vigilância estatal é a oficialização da desconfiança: a ideia de que quem recebe Bolsa Família ou BPC não teria discernimento para gerir a própria vida. Essa postura reforça um estigma e cria uma desigualdade jurídica perversa: de um lado, cidadãos plenos; de outro, cidadãos tutelados.
Em vez de proteger, o Estado escolheu vigiar. Em vez de combater o mercado ilegal, preferiu disciplinar o pobre. E, ao fazer isso, abriu mão do princípio básico da Constituição: somos todos iguais perante a lei.
O empurrão para o mercado pirata
A consequência era previsível desde o primeiro minuto. O Estado fecha a porta do mercado licenciado, mas não extingue a demanda. Quem quiser continuar jogando não desaparece — apenas migra. E a migração tem destino certo: as plataformas ilegais, que não consultam SIGAP, não devolvem saldo, não respeitam auditoria e não distinguem CPFs.
Com a decisão da SPA, cria-se, na prática, uma subvenção indireta ao crime digital. Os beneficiários expulsos do mercado regulado se tornam público cativo das operações clandestinas. E esses sites não só permanecem ativos, como crescem sem encontrar barreiras reais de fiscalização. O Brasil escolheu proteger o discurso oficial e entregar aos piratas um mercado que pode representar até 20% ou 30% do volume de apostas em regiões como o Nordeste, onde a adesão ao Bolsa Família é mais alta e a penetração das bets já era massiva.
Especialistas do setor alertam que o efeito imediato da exclusão será uma redução no volume de apostas licenciadas, ao mesmo tempo em que aumenta a clientela das operações clandestinas. A ANJL, em nota, lembrou que o STF jamais proibiu beneficiários de jogar com recursos próprios, mas apenas o uso dos benefícios. Já o IBJR, em posição divergente, optou por apoiar a medida, defendendo que verbas assistenciais não são compatíveis com apostas. O problema é que, no mundo real, essa restrição não impede o consumo: apenas desloca o fluxo para canais ilegais, onde não há nenhuma proteção ao jogador.
E aqui está a ironia maior. O governo justifica a medida como “proteção social”, mas o efeito prático é expor justamente os mais vulneráveis a um ambiente onde não existe devolução de saldo, onde a publicidade não tem filtro, onde a lavagem de dinheiro corre solta e onde a única regra é a do mais forte. É uma política que não combate o problema: apenas muda a vitrine.
Mais grave ainda é o precedente. Se hoje o beneficiário é proibido de jogar no licenciado, o que impede que amanhã essa mesma lógica seja usada para restringir outras escolhas de consumo? O mesmo cidadão que recebe seu benefício na lotérica pode, sem impedimento algum, comprar bilhetes das onze modalidades da própria Caixa. Por que a proibição vale para o online e não para a rede lotérica? Essa contradição escancara que a medida não é sobre coerência regulatória, mas sobre narrativa política.
Ao final, resta a lição que a história já ensinou: toda proibição moralista cria um novo negócio para o crime organizado. E é exatamente isso que a SPA acaba de fazer. Ao invés de proteger, vigiar ou educar, o Estado escolheu abrir um mercado bilionário para quem opera à margem da lei — e o fez em cima das costas de quem mais precisa de proteção.
A ferida simbólica: do CadÚnico ao cadastro de excluídos
O impacto da decisão vai além da técnica e entra no terreno do simbólico. O Cadastro Único sempre foi apresentado como a porta de entrada para políticas públicas e direitos sociais. Com a norma da SPA, passa a ser também um gatilho de exclusão.
O mesmo CPF que garante acesso a benefícios agora serve para fechar portas no mercado regulado. O que deveria significar proteção virou um estigma oficial: estar no CadÚnico é, por si só, motivo de veto.
Em agosto, mais de 19 milhões de famílias receberam o Bolsa Família — mais de 50 milhões de pessoas. Todas elas, pela lógica imposta pela SPA, foram colocadas sob suspeita coletiva, tratadas como incapazes de decidir o que fazer com seu próprio dinheiro. O Estado converteu vulnerabilidade em impedimento.
Se o benefício é dinheiro, a escolha é do cidadão; proibir o pobre é inaceitável
No fundo, é mais barato excluir do que investir em proteção real. É mais fácil criar uma lista de CPFs do que implementar campanhas de jogo responsável, estruturar fiscalização contra piratas ou exigir auditoria técnica séria.
O Estado prefere policiar o pobre a enfrentar o problema de verdade. E o resultado é perverso: o Brasil escolhe humilhar os mais vulneráveis em nome de uma suposta proteção que não protege.
Escolhe tutelar quem deveria ser incluído. Escolhe o atalho da exclusão em vez da engenharia da regulação. E entrega ao ilegal aquilo que deveria estar sob controle público.
O STF proibiu o uso do recurso. A SPA proibiu o pobre. Essa diferença é tudo — e é nela que se revela o rumo errado de um mercado que, em vez de proteger, rasga o princípio básico da Constituição: todos são iguais perante a lei.
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